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É como um anjo, acho que é você.

  • Beatriz Mouchrek
  • 6 de set. de 2015
  • 4 min de leitura

Coloco meus fones de ouvido e desço as escadas, já atrasada pra pegar o ônibus. Paro um instante no portão, passo os dedos pelo meu cabelo frio e respiro fundo, me preparando para mais um dia gelado. E não, eu não estou falando só do clima. No ônibus, eu tiro um livro da bolsa e começo a ler. Como eu imaginei, a música alta e o emaranhado de palavras na folha amarelada não são suficientes para me distrair dos meus pensamentos. Lembranças passam e repassam como trevas na minha mente e a culpa me esmaga por dentro tentando me consumir, o que está acontecendo a cada dia. Reluto, mas fecho o livro e tiro os fones, e acabo me entregando à tortura da minha mente. Era um dia ensolarado, eu acordei cedo e fui até a sua casa. Você me atendeu, sonolento, mas em poucos minutos já estava sorrindo e achando graça das minhas histórias da viagem, da qual eu havia acabado de voltar. Comemos bolo de chocolate e eu fiquei conversando com a sua mãe enquanto você se trocava. Fomos caminhando nas pedras até o rio que passava atrás das árvores do seu quintal. O sol refletia seus olhos e o vento forte bagunçava meu cabelo, enquanto a gente criava coragem pra entrar na água, que corria gelada por entre as pedras escorregadias, até que você pulou, e eu como sempre fui atrás. A água era escura e não conseguíamos ver o fundo. Nós ríamos das coisas mais bobas e você jogava água no meu rosto só pra me irritar. Você nadou mais pra longe onde, imagino eu, era mais fundo. Você começou a se debater e tentar falar algo mas não conseguia, porque subia e descia na água, e quando eu via seu rosto, era só por tempo suficiente para que você puxasse um pouco de ar. Eu nadei, desesperada, mas você havia ido longe e eu demorei pra chegar. Você e seus gritos mudos estavam numa parte mais baixa do rio, atrás de uma pedra grande, difícil de transpor. Vi sua expressão de medo e comecei a gritar que eu estava ali e que eu iria te ajudar, mas você mal entendia o que eu dizia por causa dos meus soluços de choro. Mergulhei e vi que seu pé estava preso por um arame farpado que cortava sua pele. Tentei soltar de toda forma, mas acabei cortando minha não e não conseguia mais. Voltei à superfície e gritei por ajuda, mas não fui ouvida. Meu desespero não cabia dentro de mim, e numa tentativa falha de nos acalmar eu te segurei e tentei te erguer. Mas eu não tinha força suficiente e meus pés não alcançavam o chão. Tentei novamente soltar o arame, mas eu tinha um corte profundo e já estava fraca com a perda de sangue. Te segurei forte pela mão e em meio aos meus gritos pavorosos por socorro eu sussurava pra você que ia ficar tudo bem, embora nem eu acreditasse mais nisso e vocé, inconsciente, não podia me ouvir. Em alguns segundos, que meu pânico fez parecer que eram horas, seu corpo amoleceu e se desvaneceu nos meu braços. Eu entendi o que havia acontecido, mas eu não podia me separar de você.. Do seu corpo. Continuei durante alguns segundos agarrada a você, mas já estava fraca pela perda de sangue e por me debater naquelas águas profundas por tanto tempo. Me afastei e nadei com o corpo pesado até a borda, e me arrastei para fora do rio. Foi a coisa mais difícil que eu já tive que fazer, te abandonar. O tempo apagou parte do que aconteceu, mas lembro de correr até metade do caminho, gritando, e ver o rosto desesperado de sua mãe, depois eu desmaiei e só acordei numa cama de hospital com um curativo na mão. Chamei o seu nome, mas você não respondeu. A sua perda dói todos os dias, em cada segundo da minha vida vazia sem o meu eterno melhor amigo. Você teve uma vida esplêndida, tirada de você tão cedo. Você fazia todos sorrirem, tornava o mundo melhor. Foi a pessoa que mais cuidou de mim, que me amou quando eu mesma não conseguia me amar. Tenho tentando achar uma maneira de levar a vida sem você, embora eu tenha a certeza que essa dor nunca será suportável, nunca será menor que a minha felicidade. Meu coração me castiga com a culpa, não consigo parar de pensar que eu poderia ter te salvado, que a sua vida esteve nas minhas mãos e eu te deixei ir. No fundo eu sei que foi um acidente, mas minha mente insiste em resoar que eu desperdicei a chance de te ajudar. Eu sei que não é verdade, e que eu lutei até o último segundo por você. Em momentos muito difíceis, quando parece que eu não vou suportar e penso em desistir, ouço uma voz me pedindo pra continuar e pra não desperdiçar minha chance de viver. É como um anjo, acho que é você. Se esse anjo estiver me ouvindo, quero que saiba: eu te amo infinitamente, e nunca vou parar de sentir que você está ao meu lado, embora a sua falta me esmague por dentro todos os dias. Por fim, tento adormecer e fecho os olhos porque não gosto de ver o mundo sem você.

30/07/2014

-Beatriz Mouchrek


 
 
 

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